Pele D'água– Simone Fontana Reis
out 2017
QUALCASA
São Paulo . SP
Em nosso primeiro contato numa residência na Amazônia, Simone logo se ofereceu para me pintar. Compartilhamos um silêncio incomum por nossa falta de intimidade. Pude sentir o gelado da tinta fresca, o cheiro azedo do jenipapo ainda verde, o atrito do carvão e a água que escorria sobre minha pele receosa. Comecei a acompanhar sua produção e assisti os grafismos migrarem de corpos para corpus: papel, tela e parede. A vi produzindo peles com tinta e, até mesmo, órgãos sexuais femininos, tateando algo no escuro.
Na primeira tela desta exposição, ela condensa e interliga narrativas. Cria a pele de uma população de mulheres. Sexos femininos, cortados a fórceps por um bisturi, lembram feridas abertas, objetos de desejo machistas acompanhados por um rosa pálido que acena para o insignificante lugar da mulher na história eurocêntrica. Olhadas por um novo ângulo, estas montanhas de tinta molhadas por dentro são também pura expressão de poder, união entre mulheres, desejo e vontade própria.
Embarcamos para uma nova residência artística, desta vez numa aldeia Kadiweu no Mato Grosso do Sul. Buscávamos modelos fecundos de liderança feminina na arte e na sociedade, mas nos deparamos com índias que se pintavam somente para o Dia do Índio e não mostravam sequer os ombros: cinco igrejas evangélicas, um pastor-cacique, dialetos e divisão de trabalho definida pelo gênero. Voltamos com todo o corpo e o rosto pintados, ainda mais certas da potência desta prática milenar, mesmo encoberta por coerções machistas, políticas e religiosas muito familiares. Havíamos incorporado também as lacunas, o encobrimento, a fragmentação.
Em Pele d’Água, ao se apropriar dos grafismos daquelas mulheres e distorcê-los com jato de água forte, Simone transforma a pintura étnica em distorções pictóricas. A tinta flutua no espaço e arredonda os cantos da sala retangular, declara sua independência, assume formas contemporâneas que preservam a transitoriedade e o aspecto cíclico dos corpus e matérias como na pintura corporal. Os grafismos resistiram, apesar de encobertos e transmutados, ao tsunami do choque colonial, quiçá um dos maiores genocídios da história da humanidade.
Somos redirecionados a uma realidade possível e passível de ser representada – o inexplorado contemporâneo. A materialização da criatividade antes de qualquer elaboração formal, ao encontrar caminhos próprios, parece nos convidar para uma nova abertura de caminhos também para a vida.
Lucila Mantovani
Simone Fontana (1965) vive e trabalha em São Paulo. Participou de diversas exposições em Londres, São Paulo, Nova Iorque e Suécia, onde viveu por 8 anos. Entre elas, destacam-se: Foreign Bodies (2001) - colaboração com cientistas da London School of Tropical Medicine (London), onde foi premiada pela instituição, The Seeds Dance (2004) – Festival de Cultural Britânica no Brazilian British Centre, também premiada pela instituição (São Paulo), Stensjöhill Mansion (2012) – sua primeira individual na Suécia, HOT ONE HUNDRED (2013) na Schwartz Gallery (Londres), New Sensation (2014) na Saatchi Art (Londres), Nem tudo que reluz é ouro (2017) no Paiol da Cultura (Manaus), Pele D’Água (2017) na Qualcasa, parceria com o Grupo Hermes (São Paulo), Salões Paranaense, de Ribeirao Preto e de Londrina (2017) e exposição coletiva Os Novos Viajantes (2018) no MUBE com curadoria de Cauê Alves. Participou da Residência Artística LABVERDE Arts Immersion in the Amazon (2016) na Amazônia e co-organizou a residência Acaia_Kadiweu (2017) na região do Pantanal com apoio do Instituto Acaia. Recentemente iniciou pesquisa para curadoria de exposição sobre o grafismo indígena no inconsciente coletivo contemporâneo. Em Novembro de 2018, a artista ganhou o prêmio de 1º lugar no 25º Salão de Artes Plásticas de Praia Grande/SP.