O Dentro É o Fora, Gustavo Prata

HERMES ARTES VISUAIS
São Paulo . SP

Gustavo Prata - Residência Hermes Artes Visuais


O DENTRO É O FORA, nome de uma escultura da artista Lygia Clark, empresta seu título à individual de Gustavo Prata. Partindo da fita de Moebius, a obra de Clark sugere que nossa subjetividade não seja interpretada como uma linha horizontal achatada, mas sim como uma colagem de duas extremidades de uma fita num caminho sem fim, nem início, onde se pode percorrer toda a superfície da fita, que aparenta ter dois lados (como a subjetividade do indivíduo e da sociedade), mas só tem um.

            Por seu formato de oito cruzado, ao percorrer o lado de dentro da fita este logo se torna o de fora e vice-versa, sendo impraticável desassociá-los. Isto é, a subjetividade que perpassa um lado é a mesma que perpassa o outro. Neste sentido, é possível imaginar o dentro e o fora, respectivamente, como uma metáfora do artista e sua produção artística. Uma vez que a superfície da fita aparenta ter dois lados mas só tem um, artista e produção artística possuem subjetividades que estão intrinsicamente conectadas, mesmo que por vezes tal percepção (espectador) ou consciência (artista) não se façam evidentes em um primeiro momento.

            É a partir desta imagem que é possível percorrer a exposição individual de Gustavo Prata, análoga à reflexão sobre a fita de Moebius, proposta por Clark. Composta por trabalhos que se estruturam por meio de metáforas de corpos de papel – mais especificamente de jornal e embalagens de produtos consumidos por Prata e amigues –,  é certo afirmar que o corpo do trabalho em exposição é, também, o corpo do artista.

            Seguindo em diálogo com Clark, para pensar as relações com os trabalhos de Prata, a artista diz o seguinte sobre sua própria obra: “O que me move na escultura O dentro é o fora é que ela transforma a percepção que eu tenho de mim mesma, do meu corpo. Ela me transforma e eu me torno sem forma, elástica... Seus pulmões são meus.” (CLARK, 1963, n/p)

            Já no trabalho 4080 de Prata, nota-se que a escultura é composta por várias caixas de cigarros, mais precisamente 204 caixas da marca Marlboro fumados pelo artista e amigues ao longo de sete meses. A matéria prima em questão é consequência direta do ato de fumar – quatro mil e oitenta cigarros queimados, inalados e exalados. O resultado é uma espécie de coluna pulmonar que compõe a arquitetura do próprio espaço expositivo.

            Enquanto Clark olha para sua escultura e diz “seus pulmões são meus”, Prata traz para o espaço esta coluna pulmonar e compartilha com o espectador o ar, ou melhor, a falta dele. É nesse sentido que as duas obras são capazes de transformar a percepção que ambos artistas têm de si em seus próprios corpos, uma vez que o ar de dentro vem de fora.

            O mesmo processo se dá em Amálgama, contudo não se trata mais da percepção do corpo através de um órgão ou produto especifico, mas sim deste como um todo e do consumo em sua diversidade. Nota-se aqui inúmeras embalagens de produtos, muitos deles possivelmente consumidos descontroladamente por Prata. O trabalho se constrói pela vontade de preenchimento de um vazio insaciável, amalgamando o artista a uma pluralidade de produtos de consumo material.

            Trata-se de um corpo predatório, de um corpo humano. Um corpo que parece ter dentro de si uma espécie de “buraco sem fundo” a ser preenchido, como se estivesse constantemente em um estado de falta, necessidade, inadequação e instabilidade. Existe um mal estar nesse corpo, como quem abocanha o que lhe convém para amenizar sua dor.

            E se, ora este corpo devora cigarros, ora ele devora chocolates, açaí, pastas dentais, remédios, sabonetes, catupiry etc. Não à que toa estas são obras que materializam o consumo excessivo, o vício, a higiene, a compulsão, a ansiedade e a voracidade do próprio artista, uma vez que o corpo de Prata é o protagonista de sua própria escultura, mesmo que em papel.

            Com a mesma intensidade e método que operam os trabalhos realizados com embalagens, as colagens em jornal se diferenciam por um único detalhe: em vez de produtos de consumo material, o que passa a ser consumido são informações. Tal como em Amálgama, em que não é possível ter uma leitura completa das embalagens, as informações nos trabalhos em jornal apresentam suas mensagem numa cacofonia visual. Uma vez devorados, o que se apresenta são ruídos de frases e palavras, cortados e colados obsessivamente.

            Quanto à formalização dos trabalhos, é curioso perceber como que a materialidade e o conteúdo de cada papel são determinantes na construção das obras: existe uma espécie de elasticidade corporal própria do papel que parece guiar Prata em suas colagens, como se as imagens respondessem aos gestos do artista, que, por sua vez, responde às características próprias da matéria. Por exemplo, diferente das embalagens de produtos de consumo material, em Verso, é possível ver os dois lados deste corpo em papel, mais uma vez realçando o fato de que o dentro é o fora. 

            É como se ao percorrer a individual de Prata, fossemos conduzidos pela imagem suscitada pela obra de Clark. Uma exposição que celebra o fim de um de muitos ciclos da produção deste artista, após uma intensa e produtiva residência artística de cinco meses. Ou melhor, um fim que é o início, conforme a imagem da fita de Moebius.

           

Paula Borghi

 

CLARK, Lygia. O dentro é o fora (The inside is the outside). 1963. Escultura em aço inoxidável, 40.6 x 44.5 x 37.5 cm. Disponível em:

< https://www.moma.org/audio/playlist/181/2393>. Acesso em 2 de mar. 2021.


Text e Acompanhamento Crítico: Paula Borghi

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Carla Chaim