Faz Primavera no Inverno

HERMES ARTES VISUAIS
São Paulo . SP


Faz primavera no inverno

 

Casa, deusa da pradaria, ó luz do entardecer,
De súbito alcanças uma face quase humana.
Estás perto de nós, abraçando, abraçados.
Bachelard
 

De um lado, um tecido azulado profundo avança noite fria adentro. Do outro, um pano quente inaugura a luz do dia. Entre um e outro, uma dualidade tênue advinda de tempos divergentes se faz presente e se alastra pela sala. De Desirée Hirtenkauf, Faz primavera no inverno é a obra que abre a exposição que leva o mesmo nome e que reúne o conjunto de peças por ela feitas durante o período de residência no espaço Hermes. Erguida como um portal – feito abrigo de proteção que luta contra tempestades e garante a calmaria – a obra (manufaturada a partir de uma costura minuciosa que resgata a estética de peças domésticas e adornos decorativos presentes na casa onde cresceu) insurge como um frontispício que permite um acesso a seus tempos de infância e que abre espaço à imaginação e ao devaneio. 

Toalhas de mesa, cortinas, santos e relicários – em cada canto uma morada da vida interpenetrada, guardando a recordação de dias mais antigos. Atrelados ao peso afetivo de uma época que até hoje a artista carrega junto a si, as peças de Desirée ora erguidas e expostas pelo espaço exibitivo são, em essência, reedições de fragmentos que trazem ecos de um tempo em que objetos como esses habitavam silenciosamente os espaços da casa onde viveu. A casa, já dizia Bachelard, é o nosso canto no mundo. Nela, os espaços que acolhem todas as coisas – os espaços dos baús, dos cofres, dos fundos das gavetas, das estantes e armários – tornam-se nossos abrigos íntimos e ocasionais, capazes de produzir lembranças tidas como instrumentos de descoberta do espírito. Para o autor, acionar tais instrumentos é também uma maneira de criarmos imagens poéticas que, embora não sejam totalmente reais ou racionais, possuem um dinamismo próprio; são vividas com todas as parcialidades e nuances da imaginação. E talvez seja precisamente esse o exercício que Desirée vem reiteradamente explorando ao longo de sua trajetória artística. Sua casa — assim como outras que, por ventura, venha a considerar como sua, ainda que temporariamente — torna-se seu lugar ideal e privilegiado para o resgate da lembrança, para o sonho e o devaneio. Afinal, é nela que o devaneio se aprofunda e onde um domínio imemorial, além da mais antiga memória, se abre para o sonhador do lar. 

por Lola Fabres 

* BACHELARD, Gasto. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 


 

Desirée Hirtenkauf

Acompanhamento curatorial por Lola Fabres

Fotos: Estúdio Em Obra e Hermes Artes Visuais


Carla Chaim