Visions of Love
HERMES ARTES VISUAIS
São Paulo . SP
Visions of Love
… visions of love …
Fim de março, ainda no rescaldo do carnaval, o ano vai finalmente engatando, acelerando, arrebentando… Sem água morna, Carla Chaim e Daniel Castilho me convidam a escrever para esta exposição coletiva, com pinturas, instalações, esculturas, colagens, serigrafias, feno, patinhos, vigas apoiadas em plumas, suspiros, quindins, o Taz-Mania apaixonado em paninho bordado, rocalhas de papel, romãs de porcelana e anotações em torno à escolha da cor. São “visões do amor” _ me disseram!
Materializações do amor _ entendi, imaginei. Assim comecei a olhar para os trabalhos de Daniel, Luah, Maria, Sérgio, Silvio e Susy.
… visions of love …
Fim de março, mas é no poema Fevereiro, de Matilde Campilho, que não consigo mais parar de pensar enquanto ainda não sei como esses trabalhos vão conviver em um só espaço, em uma exibição:
O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?
Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.
Faz algum tempo que também acho que o amor é assim, movediço. Se espalha por esses seis ateliês, laboratórios alquímicos das emoções, de ideias que têm corpo, carne, pele, cabelos e coração. Tomando diferentes formas e incorporando materialidades ambíguas. Como cada doce que minha avó me deu, com tanto afeto, tanto amor, que hoje lido com um quadro de pré-diabetes e lembranças muito vivas de seus paninhos bordados cobrindo tudo pela casa. O amor pode ser doce, como o são muitos venenos… E talvez dependa da dose.
… visions of love …
Fim de março, ainda no rescaldo do carnaval que acabou. Peninhas adornam ferraduras de cavalo e não podem mais voar, levitar. Seria essa a imagem do amor quando decide ficar? Ou da submissão? Da entrega? Da dependência? Da vontade de controlar o objeto do desejo? É mesmo ambíguo e nunca se equilibra, é uma tensão com a qual vamos aprendendo a conviver. Ferraduras também possibilitam cavalgadas mais longas, talvez com plumas o trote fique mais macio.
Não quero pesar o amor ao pensar muito enquanto escrevo e olho para os trabalhos reunidos aqui, embora veja girassois ancorados ao chão que ainda dançam e ascendem. Vejo também um bordado com linhas coloridas que se desprendem de uma hachura cinza e apertada, lembrando as manchas de canetinhas no lençol quando eu e minha irmã desenhávamos na cama, perfurando o papel para escrever “mamãe amo muito você” sem querer saber que a querida, já exausta, teria que lavar de novo a roupa de cama…
Mas tenho dialogado muito com uma capricorniana emocionada de língua afiada, que me ajudou um pouco a alinhar o que sinto diante desses trabalhos. A Susan Sontag (e não é só pelo aspecto camp de quase todas essas obras e do ponto de partida que as reúne), em seus diários publicados postumamente, com textos estilhaçados, sem o encadeamento argumentativo de seus ensaios, buscando conciliar a razão e a carne _ As Consciousness Is Harnessed to Flesh: Journals and Notebooks, 1964-1980. Nessa toada de reflexões em que o controle e o arrebatamento coexistem, ela define para si mesma a possibilidade de render-se e tornar-se vulnerável a um poder que o outro emana e ameaça sua autonomia. Aceitar ver-se como uma xícara trincada, irreparável, mas ainda plena com o ganho da história de quebrar-se, fazer-se outra coisa, revestir-se de outras peles e ganhar mais áreas porosas, expandir-se aos encontros.
… visions of love …
Fim de março, ainda no rescaldo do carnaval e o plâncton rebola gostoso tatuado na tela, fantasia virtual sobre o rosto sorridente que se recorta por tesourinhas. Seria essa a droga que é o amor quando libera um soco de oxitocina nas veias e leva todo o sangue para o coração, o estômago, abandonando a cabeça? E a baba-de-moça dos ovos moles que escorrem de uma mão para a outra, boca, queixo, colo, se derramando no meio do beijo, na troca, no gesto sensível. Seria essa a metáfora do amor verdadeiro? Não aquele romântico e patriarcal, mas o amor radical de que fala bell hooks em All About Love - New Visions:
To truly love we must learn to mix various ingredients — care, affection, recognition, respect, commitment, and trust, as well as honest and open communication.
[Para amar de verdade, precisamos aprender a misturar vários ingredientes — cuidado, afeto, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, além de uma comunicação honesta e aberta.]
Então, acho que o amor quando aparece é porque, pelo menos em suas obras, há a projeção de uma conversa transparente consigo, a intervenção no tempo das matérias e dos símbolos. Fazendo concatenar que o mundo ainda pode ser duro sem deixar de ser macio, atrito que se faz abrigo. O importante é ter disposição, pois ainda é março e fevereiro logo vem nos atropelar de novo, com outro carnaval.
… visions of love …
Tálisson Melo
Daniel Castilho, Luah Souza, Maria Livman, Sergio Romagnolo, Silvio Dworecki e Susy Miranda Aziz.
Organização: Daniel Castilho
Texto Crítico: Tálisson Melo
Fotos: Estúdio Em Obra