Romper a superfície é abrir um rio para dentro
12/03/2022 a 09/04/2022
no FONTE
Rua Mourato Coelho, 751
Vila Madalena
Realização:
Hermes Artes Visuais
Romper a superfície é abrir um rio para dentro
Todo acontecimento possui potência de invenção por gerar novos fragmentos no mundo. A abertura de outros possíveis, na proposição de dobras na realidade, perturba porque dá a ver que todas as coisas vibram em um movimento de constante impermanência: toda matéria é um eterno fronteiriço prestes a romper, formada e deformada por meio das afetações quando entra em contato com outra matéria. Tudo o que está existe em constante remodelação de si mesmo, mas em movimento junto de outro. Se por um lado isso permite encontrar certa fluência, caminhos e continuidades nos encontros e vibrações que incidem nessa matéria –que encarna em sua superfície todos os toques, colisões e acidentes -, por outro lado, revela-nos com sua fragilidade a lembrança de estarmos todos sempre por um fio. É inevitável: há de se aprender a ser finito. Penso na ensinança bonita narrada pelo poeta libanês Khalil Gibran, ao falar da coragem absoluta do rio em dissolver-se por completo para se tornar mar, mas não sem antes vivenciar tremores, resultado do choque violento ao cruzar a membrana aquosa que diz para cada uma de suas gotas: és agora água salgada. Se fabulássemos uma história da hidrologia, o sal seria sua primeira cicatriz. Digo cicatriz porque, diferente de como estamos acostumados a pensá-la – pelo aspecto da dor ou do erro -, a cicatriz é esse leque de possibilidades de como a matéria pode se readaptar depois de uma ruptura. A vida está sim, sempre por um fio, mas, ao mesmo tempo, seu único destino é perseverar.
É pela cicatriz, por exemplo, que entendemos que algumas situações nos impõem a invenção de uma nova corporalidade. O problema não é a situação que deixa marcas, mas o nosso desvario de acreditar que é possível manter-se ileso no que é acontecimental da vida - um eterno rasgar-se e remendar-se, já dito pelo Guimarães Rosa. É também pela cicatriz que perdemos a referência entre o que é interior e exterior ao perceber que, mesmo a matéria mais densa, mais rígida, pode se fragmentar até chegar a um tamanho ínfimo e que, do ponto de vista da trama celular, não existe a ideia de avesso, apenas integração – algo que não é nem dentro, nem fora, nem um, nem outro, mas os dois ao mesmo tempo. Perceber as tendências reativas de um corpo, a cartografia desenhada por aquilo que vai se rompendo sobre uma superfície, é uma resposta não só para o que ele recebeu enquanto vibração, mas do que pode transmitir, já que não existe aparição que não se enderece a algo. Por ser o processo cicatrizante a proposta de uma nova conformação, testemunhá-lo é presenciar a atuação do tremor, da origem e da imaginação em uma única estrutura, ao tornar-se índice e vestígio. Consequência do vivido, de uma experiência, a pergunta talvez não seja o que aconteceu, mas o que se faz daquilo que [nos] acontece?
Veja que coloco a pergunta no presente. Faço-o por uma crença inexorável de que a memória é sempre do agora, e é ela quem leva o hoje ao fato ocorrido. Lembrar é uma intenção afetiva, ou seja, as situações que resgatamos são sempre modeladas pelos sentires que estão nos atravessando no momento em que lembramos de algo. É por isso que a cicatriz é incapaz de contar uma história por si. Primeiro, porque desconhece o conceito de história; segundo, porque tendo este caráter indicial, é a tradução de um acontecimento que nunca cessa de acontecer, já que o ressignificamos toda vez que contamos sobre ele – as situações se deslocam, mudam de ordem, fazem uma curva. Então, se na nossa narrativa invertermos a lógica de que a cicatriz fala do passado, e a colocarmos no lugar das coisas que existem no tempo presente, mas o presente espesso de que nos fala a filósofa Donna Haraway, esse capaz de criar uma ponte entre passado e futuro sem aniquilar qualquer uma de suas relações, integrando todas elas, a cicatriz não será apenas a manifestação de uma ruptura e seu restauro, mas possibilidade de atualização, inaugurando sentidos outros para essa marca.
Composta de matérias sensíveis em comoção, a exposição Romper a superfície é abrir um rio para dentro reúne trabalhos de diferentes matrizes relacionais que buscam explorar as multiplicidades que envolvem pensar o tema cicatriz por meio da acolhida da soltura, do buraco, da impermanência, do rasgo, da ferida, da interferência, da interrupção, da vulnerabilidade, da reformatação, da edição, do encaixe, do que é possível fazer quando algo cede, do que é viável quando algo deixa de existir, do que sobra do sumiço, do que nasce da morte. Cada trabalho constrói uma espécie de mito de origem impossível de se capturar em uma narrativa em linha reta, por preservarem em si certo estado de convulsão que acaba por fundir meio, fim e começo. Assim como o processo de reconstrução celular dos tecidos, cada trabalho usa da ruptura - seja ela a do próprio material ao tornar o gesto um algoz, seja pela perturbação de um atravessamento - como possibilidade de criação. Adicionam, com a estranheza das marcas que trazem, mais uma camada de tecido ao plano da realidade por não enveredarem à tarefa vã de tentar restituir o que [se] era antes de uma ruptura, mas por trabalharem em cima da matéria disponibilizada pelo que cindiu. É um convite a ouvir os tremores que surgem do rompimento. Ou a vibração do renascimento.
Paloma Durante
{ FICHA TÉCNICA }
Artistas:
Adriana Amaral, Ana Rey, André Felipe Cardoso, Cassia Cola, Cristina Lisot, Cynthia Loeb, Débora Rayel Eva, Guilherme Borsatto, Jota Testi, Luana Lins, Luiza Lavorato, Marinalva Rosa, Michelle Rosset, Miriam Bratfisch Santiago, Patrícia Abbott, Simone Dutra, Simone Fontana Reis, Sofia Saleme, Susy Miranda Aziz, Yohana Oizumi
Organização:
Carla Chaim e Nino Cais
Texto crítico:
Paloma Durante
Realização:
Hermes Artes Visuais
Abertura:
12 de março, das 11h às 18h
Visitação:
de 12/03 à 09/04, de quarta à sábado, das 11h às 18h
FONTE
Rua Mourato Coelho, 751
Vila Madalena
São Paulo